‘E a Vida Continua’ conta drama da Aids

CÁSSIO STARLING CARLOS 
EDITOR-ADJUNTO DA “ILUSTRADA”

A controvérsia em torno da descoberta do vírus HIV, voltou à tona nos últimos dias depois que o governo americano reconheceu a primazia do cientista francês Luc Montagnier do Instituto Pasteur de Paris na identificação do retrovírus causador da Aids. Mas, antes da decisão oficial, o filme “E a Vida Continua” já se dedicava à tarefa de denunciar o comportamento antiético do pesquisador norte-americano Robert Gallo, que disputava com os franceses a patente da descoberta.

A pesquisa em torno dessa questão delicada, reconstituindo o processo de aparição de uma estranha doença detectada entre homossexuais nos EUA no fim dos anos 70, sua expansão sob a forma de epidemia ao longo dos anos 80 e a denúncia do desleixo das autoridades dos EUA frente ao avanço do mal, foi realizada pelo jornalista e escritor Randy Shilts e publicada em 1987, transformando-se logo em best seller.

E a Vida Continua“, o filme produzido pela TV americana e dirigido pelo competente Roger Spottiswoode, é um filme político, de acordo com a letra e o espírito de “And the Band Played On: People, Politics and the Aids Epidemic” –o livro de Shilts.

O projeto audacioso de “E a Vida Continua” contou com a colaboração de um exército de estrelas, primeiro time de figuras públicas a se engajar na luta por maior atenção à gravidade da epidemia. Pela tela desfilam, em papéis de destaque ou em simples pontas, nomes como Richard Gere, Anjelica Huston, Lily Tomlin, Alan Alda, Steve Martin, Phil Collins e, no front francês, Nathalie Baye, Tcheky Karyo e Patrick Bauchau.

Com imagens ficcionais e documentais o filme ataca com coragem o descaso das autoridades, a insuficiência de verbas dedicadas à pesquisa, a resistência do governo Reagan em reconhecer a existência do perigo fora do “grupo de risco” (eufemismo que à época serviu para associar o mal às práticas homossexuais).

Câncer gay” era o termo que então se utilizava para identificar uma síndrome transmitida por contatos sexuais, o que equivalia a uma espécie de condenação moral por práticas tidas como “contra a natureza”. Até que os casos começassem a atacar pessoas que haviam se submetido a transfusões de sangue –como os hemofílicos–, tudo era considerado apenas “castigo de Deus”.

É ao focalizar o acúmulo de dramas individuais antes de se transformarem em tragédia coletiva que “E a Vida Continua” ganha força. O enigma que desperta a curiosidade do dr. Don Francis (interpretado por Matthew Modine), um médico do Centro de Controle de Doenças de Atlanta, serve como o fio condutor da trama.

Em torno dela gira o jogo de interesses: a comunidade gay de San Francisco lutando pela preservação das conquistas de liberdade sexual, os bancos de sangue defendendo seus lucros às custas da segurança da população, e os pesquisadores Luc Montagnier, na França, e Robert Gallo, nos EUA, disputando a glória e os royalties da descoberta do HIV.

Além do mérito da reconstituição esclarecedora “E a Vida Continua” também reformula o sentido viciado que a palavra engajamento adquiriu no tempo em que os filmes políticos foram moda.

Na época em que o politicamente correto corre o mesmo perigo, a militância pedagógica que acompanha cada sequência do filme poderia ser algo maçante, não fosse o fato de a Aids ter deixado de ser uma ameaça restrita a um grupo e ter passado a determinar a necessidade coletiva de sobreviver.

Infelizmente, “E a Vida Continua” não é um filme comum, daqueles que o espectador, incomodado diante do que assiste, pode encontrar alívio ao imaginar que tudo aquilo é apenas ficção.

Filme: E a Vida Continua
Direção: Roger Spottiswoode
Elenco: Matthew Modine, Lily Tomlim, Richard Gere, Alan Alda

Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO/ILUSTRADA, São Paulo, quinta-feira, 14 de julho de 1994

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